Greyce Lousana – Presidente Executiva SBPPC
Conceição Accetturi – Presidente SBPPC
março de 2012
O que leva o governo a desenvolver um projeto por mais de quatro anos e publicá-lo, sabendo que ele possui tantas e tão importantes falhas? O que devemos pensar sobre as políticas públicas, seus gastos e formas de planejamento, quando nos deparamos com situações como a que estamos vivenciando? Por que razão a Plataforma Brasil – planejada inicialmente para possuir vários Módulos – é lançada quando esses Módulos não estão prontos? É razoável ouvir que não havia mais como esperar e o único jeito era liberar a Plataforma, mesmo sabendo que ela não estava completa, mas essa seria a única forma de chamar a atenção do MS? Será que é assim que se faz planejamento público no Brasil? Libera o projeto e depois corre atrás do prejuízo?
O que será que os técnicos do DATASUS juntamente com a equipe que encomendou este projeto disseram para o Ministro da Saúde, que fez com que ele inaugurasse – pela terceira vez – a Plataforma Brasil, mesmo sabendo que ela não tinha passado por uma validação minimamente básica?
Posso não entender quase nada de Tecnologia da Informação, mas mesmo leiga no assunto, posso imaginar o que deveria ser feito pela equipe de planejamento do Ministério da Saúde ao desenvolver um Projeto de TI que pretende, segundo exposto em sua página inicial, “ser uma base nacional unificada de registros de pesquisas envolvendo seres humanos para todo o sistema CEP/CONEP, permitindo que as pesquisas sejam acompanhadas em seus diferentes estágios – desde sua submissão até a aprovação final pelo CEP e pela CONEP, quando necessário – possibilitando inclusive o acompanhamento da fase de campo, além de propiciar à sociedade o acesso aos dados públicos de todas as pesquisas aprovadas”? Vamos lá, vou sugerir alguns passos que imagino tenham sido pensados pelos especialistas:
1º Constituição de um Grupo de Trabalho formado por profissionais que representassem os seguintes segmentos:
- Representantes das diferentes áreas do conhecimento. Afinal, a Plataforma Brasil pretende cadastrar todos os estudos envolvendo seres humanos.
- Membros relatores de CEP: esta seleção deveria incluir os Comitês que mais recebem projetos e os que menos recebem projetos. Afinal, os dois extremos utilizam o Sistema e suas experiências devem ser avaliadas.
- Pesquisadores: aqui deveríamos ter os que vivem apenas o ambiente acadêmico, habituados, portanto aos estudos de Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado, Pós-doc, enfim, projetos oriundos da Academia, e também os pesquisadores que atuam em empresas públicas e/ou privadas, habituados aos estudos com cooperação entre empresas e/ou países, com estudos multicêntricos, com gestão de estudos que geram patentes, enfim, com pesquisadores cuja pesquisa possa gerar inovação e/ou registro. É claro que isso também ocorre na Academia, mas todos sabem que temos vários aspectos distintos nesse processo.
- Patrocinadores: os profissionais aqui representados deveriam atuar em Agências de Fomento, empresas privadas nacionais e internacionais com diferentes focos (medicamentos, produtos para a saúde, cosméticos, alimentos).
- Representantes do governo: se a Plataforma envolve todos os estudos em seres humanos, a representação interministerial deveria ser mandatória. Afinal, um Ministério não deve legislar sobre um tema que envolve diferentes setores, sem uma boa articulação entre eles. No mínimo espera-se que a CONEP, depois de quinze anos, tivésse conhecimento da estatística dos projetos de pesquisa envolvendo cada uma das áreas do conhecimento, o que nortearia a composição desta representação.
- Participação de uma representação de usuários, uma vez que um dos objetivos da Plataforma Brasil seria o acesso para a população dos locais onde ocorrem estudos clínicos nas mais diferentes patologias.
- Equipe técnica preparada para entender o que o grupo esperaria de um sistema informatizado que diz “ser uma base nacional unificada de registros de pesquisas envolvendo seres humanos”.
2º Uma vez composto um Grupo de Trabalho com as características citadas acima, os técnicos do DATASUS organizariam reuniões pontuais com cada um dos setores envolvidos, a fim de levantar as necessidades específicas de cada subgrupo, lembrando que o Sistema deveria ser norteado pelos marcos regulatórios. Ao final de uma rodada de reuniões o DATASUS teria condições de elaborar um cronograma de atividades para apresentar ao Ministro, bem como o custo para o desenvolvimento do projeto e o que seria possível esperar com a implantação desse Sistema.
3º O próximo passo seria cumprir com o cronograma de reuniões, garantir que o Projeto estivésse sendo seguido de acordo com as especificações solicitadas e, enquanto isso, programar testes piloto para avaliar se o que já estava pronto cumpria com os requisitos solicitados inicialmente.
4º Enquanto o Projeto estivesse em fase de desenvolvimento, uma equipe deveria avaliar como seria feito o processo de transição entre o SISNEP e a Plataforma. Nesse ponto, imaginar que “alguém” poderia dizer ao DATASUS que o SISNEP poderia ser migrado para a Plataforma, sem que os técnicos responsáveis pelo Sistema conferissem essa informação, seria, sendo gentil, algo estranho e imperdoável!
5º Pois bem, é de se pensar que ao longo do desenvolvimento desse Projeto, com certeza ousado, mas de extrema importância, ter em mente a definição do que exatamente se esperava dele seria um requisito essencial para o seu sucesso. Se o objetivo é mal definido, as chances de fracasso são grandes. Sendo assim, sempre fica a pergunta: O que o governo queria da Plataforma Brasil? Imagino que ele quisesse o que a comunidade científica e a população também queriam: uma base de dados inteligente, capaz de fornecer informações sobre a realidade da pesquisa no país em tempo real – o que nunca existiu – com funcionalidades que atendessem a todos os seus usuários e em sintonia com as normativas. Com tais itens, certamente os prazos para a avaliação ética de pesquisa em seres humanos tenderiam a se reduzir, bem como os CEPs pouco capacitados seriam eliminados, os pesquisadores sem conhecimento regulatório poderiam ser inspecionados, enfim, os objetivos da Plataforma sendo atendidos, trariam como consequência, ganhos em vários aspectos. Vamos deixar claro então que: o objetivo da Plataforma não deveria ser a redução de prazo na tramitação dos projetos, mas sim, dar transparência a um Sistema com dados mais confiáveis, possibilitando um melhor acompanhamento dos estudos, dos CEPs, da CONEP, dos pesquisadores, enfim, das pesquisas de forma geral.
6º Imagino que enquanto tudo o que foi citado acontecia, oficinas entre os CEPs, pesquisadores e técnicos responsáveis pela Plataforma estariam ocorrendo, a fim de avaliar as funcionalidades do Sistema e de se certificar que a transição SISNEP/Plataforma seria aceita e entendida pelos mais de seiscentos CEPs, milhares de pesquisadores e usuários em geral.
7º Enquanto isso, o Ministro estaria recebendo relatórios sobre a evolução do Projeto e assim, acompanhando o cumprimento ou não do cronograma e de eventuais ajustes, bem como dos valores financeiros investidos pelo governo. Assim, um belo dia, a Plataforma seria lançada e o país, depois de anos e anos de pedidos mal sucedidos, teria um processo de tramitação racional para os seus projetos de pesquisa. Mas… na vida como ela é… o que tivemos de verdade, foi:
- Uma Plataforma que foi lançada três vezes e, em cada uma das vezes, com diversas alterações radicais.
- Convites para que os CEPs participassem de Oficinas pelo país, que muitas vezes não chegaram ao conhecimento dos Comitês.
- Oficinas realizadas com alguns CEPs, mas que não conseguiram atender à maioria deles. Pelo menos não foram publicados dados reais sobre tais Oficinas: total de participantes, perfil, resultados obtidos.
- Os CEPs que participaram das oficinas não replicaram os conhecimentos adquiridos – se é que adquiriram algum – aos demais membros do Comitê e aos que se utilizariam deste Sistema (pesquisadores, alunos, usuários em geral). Alías, não sabemos ao certo quais foram as estratégias previamente estabelecidas pelo Projeto da Plataforma, para que os CEPs organizassem ações dentro de suas instituições. Também não se sabe quais foram os recursos financeiros para essas ações. As Instituições foram notificadas que o SISNEP sairia de operação em 15 de janeiro de 2012 com quanto tempo de antecedência? Não cabe aqui uma discussão sobre quais seriam as necessidade das instituições para programar essa transição e vale lembrar que a última oficina ocorreu ao final de 2011, em um período próximo ao encerramento do ano letivo.
- O dia 15 de janeiro chegou, o SISNEP foi retirado do ar, a Plataforma Brasil foi liberada e o que vimos…. a. O governo alegando que os problemas eram pontuais e que vários projetos estavam sendo registrados sem qualquer intercorrência;b. Pesquisadores alegando que não conseguiam se cadastrar, pois o Sistema originava mensagem de erro com freqüência; c. A ajuda “on line” do sistema ou está “off line” ou te coloca em fila de espera e não consegue te atender. Não sabemos ao certo quantos foram os profissionais designados para esta ajuda, mas não dá para imaginar que este número não tenha sido dimensionado desde o início do projeto em função do total de CEPs, de pesquisadores e de usuários em geral; d. Relator de CEP tendo que se cadastrar como pesquisador para depois ser alterado seu perfil e finalmente vinculado como relator ao seu respectivo CEP; e. Instituições que não conseguiram se cadastrar, ou por falta de compreensão sobre o Sistema, ou por incompatibilidade de dados; enfim, sem cadastro da Instituição, vários CEPs, também não se cadastraram; f. Coordenadores de CEPs que não entenderam como iniciar o processo de cadastro, e portanto, o CEP parou de operar; g. Os projetos que conseguiram se cadastrar, ao chegarem ao CEP, só puderam ser liberados para um único relator (sem noção!). Este Sistema não conhece a realidade dos diferentes Comitês e não é razoável imaginar que ele tenha sido desenvolvido sem que as diferentes realidades tenham sido avaliadas; h. A Plataforma não prevê sub-estudos, não prevê Emendas Administrativas, não prevê projetos multicêntricos sem a obrigatoriedade de um Centro Coordenador, prevê de forma equivocada com as próprias recomendações da CONEP, a questão de proponente e co-participante, não prevê a inserção de forma adequada de vários estudos, por exemplo, estudos com alimentos, cosméticos; enfim, a Plataforma, no mínimo, parece que foi relançada pela terceira vez sem qualquer tipo de cuidado quanto a sua concepção, planejamento e utilização. Isso tudo sem falar do REBEC, que embora tenha outro foco, também foi desenvolvido com dinheiro público, e só foi discutido entre as diferentes equipes do MS para tentar alguma harmonização com a Plataforma depois de muito tempo e muito dinheiro gasto.
Pois bem, algumas perguntas que não querem calar:
1º Quanto custou aos cofres públicos o desenvolvimento da Plataforma Brasil nos últimos quatro anos?
2º O cronograma inicialmente previsto foi cumprido? Se não, quais foram as razões? E as ações preventivas e corretivas?
3º Como foi desenvolvido o projeto? Quem monitorou os trabalhos? Quais foram os responsáveis pelo GT? Quais foram os critérios para a seleção desses responsáveis? Qual a experiência desses profissionais?
4º Quantos CEPs participaram das Oficinas realizadas pelo MS em 2011? Esta verba estava prevista pelo projeto?
5º As Oficinas foram efetivas? Quais foram os parâmetros para medir a efetividade de tais Oficinas?
6º Quantos CEPs apresentaram planos para replicar as informações obtidas aos seus relatores e usuários do Sistema? Estes treinamentos aconteceram? Foram efetivos?
7º Em 15 de janeiro de 2012, momento em que o SISNEP saiu de cena, quantos CEPs estavam cadastrados na Plataforma? Quantas Instituições estavam cadastradas? Quantos pesquisadores?
8º O governo possuía todas essas respostas e uma análise das mesmas antes de definir o dia 15 de janeiro de 2012 como prazo final para o SISNEP?
9º A CONEP e o DECIT estavam em sintonia quanto às respostas para as perguntas que seriam demandas pelos usuários do Sistema?
10º Os Guias sobre “Orientações Básicas para Análise e Tramitação de Projetos de Pesquisa pela Plataforma Brasil pelos CEPs” e “Orientações básicas para submissão de projetos de pesquisa” foram enviados, revisados e validados por quantos CEPs antes de sua publicação?
11º O Glossário que foi liberado pela Plataforma possui itens cuja definição consta “DEFINIR”, bem como várias letras que não possuem qualquer palavra. O GT da Plataforma entendeu que a publicação do documento dessa forma seria razoável?
12º O FAQ possui seis questões. Esse teria sido o total de dúvidas levantadas durante as Oficinas?
13º Qual o objetivo primário da Plataforma? Foi redução de tempo, afinal, a imprensa inúmeras vezes noticiou que o país possuía prazos regulatórios extensos, então o que interessava era apenas mostrar que o prazo poderia ser reduzido com uma tramitação “on line” e assim proteger a imagem do Ministério? Não sabemos, mas penso que tivemos problemas que vão muito além do que se possa imaginar, pois parece que a Plataforma foi lançada mesmo sem ter passado por passos básicos tais como:
- Validação do Sistema com um número de CEPs considerado significativo e por um período capaz de detectar falhas operacionais;
- Garantia de cadastro de um contingente de instituições e CEPs considerados representativos para o país;
- Garantia de que os CEPs teriam estratégias para replicar os conhecimentos aos usuários do Sistema;
- Garantia de haver conexão entre as diferentes interfaces (CEP; Instituição; CONEP; ANVISA; população; pesquisadores) do Sistema.
Enfim, temos hoje um projeto que foi esperado durante muito tempo, virou folclore por ser lançado e relançado tantas vezes, e que infelizmente não recebeu o cuidado que merecia, em função de sua importância para os usuários e para os que de alguma forma dedicaram esforços para o seu desenvolvimento. Como respeitar um Sistema que quer se mostrar tão zeloso nas suas avaliações éticas e tão cuidadoso quando o tema é o controle social, se no momento em que ele libera uma Plataforma, tão esperada para garantir a transparência dos processos, temos esse tipo de resultado?
Agora nos restam o esforço de entender o Sistema e suas falhas e a esperança de que, ainda que tardiamente, o Ministério da Saúde entenda que precisa ouvir todos os usuários da Plataforma, corrigir e/ou ajustar suas imperfeições e assim, depois de quinze anos, proporcionar ao país uma base de dados com todas as informações que foram solicitadas há anos pela sociedade.
Quanto à imagem do Ministério, seria importante zelar por uma instituição que representa um dos mais importantes pilares da Esplanada.